Seus bofes estavam quase saindo pra fora quando ele parou de correr, o coração galopava forte no peito e fazia seus olhos pulsarem nas orbitas. Atrás dele estava o cadáver, despedaçado, prensado no asfalto quente. O ônibus tinha passado por cima do animal, uma das rodas dianteiras acertou a cabeça, transformando o crânio no puzzle demoníaco, o corpo fora partido ao meio, trabalho quase cirúrgico da roda traseira do automóvel.
Já estava acostumado a fugir dele, sempre quando deixava a correspondência na casa dos Nogueira, uma família estranha de reputação ruim no bairro, o animal avançava no portão, latindo como se não houvesse amanhã, exibindo as presas afiadas, sedentas para arrancar um pedaço de sua carne. Quase sempre ele conseguia escapar de sua casa e o perseguia, mas dessa vez, a última vez, o cachorro dos Nogueira encontrou um predador maior do que ele. Um dinossauro de aço que o esmagou no cimento numa fração de segundos.
Algumas pessoas olharam assustadas para o cadáver do animal, outras gritaram para o motorista do ônibus que seguiu caminho, sem se quer parar no farol. Paulo teve vontade de para-lo também, não para lhe agredir, mas sim para agradecê-lo de todo o coração. Aquele cachorro transformava seus dias de trabalho num verdadeiro martírio, que o fez pensar em pedir demissão inúmeras vezes.
Contudo, agora ele podia respirar aliviado. Podia ir trabalhar no dia seguinte sem ter que se preocupar com aquele maldito animal, isso o fez abrir um sorriso largo e sincero “Bem feito, vai latir no inferno agora, seu animal burro”, pensou.
Mas foi nesse instante que, entre os curiosos do outro lado da rua, apareceu um dos donos do animal: Ivo Nogueira, um velho cego do olho esquerdo que usava uma bengala de marfim. Ele encarou o cadáver do animal com tristeza, caminhou até ele, caiu no chão de joelhos e começou a juntar os pedaços com as mãos nuas, sem pudor algum, fazendo as pessoas ao redor gemer de nojo e se afastar, alguns carros buzinaram querendo passar.
Paulo olhou com desprezo àquela cena, ainda sorrindo, e sentiu um calafrio mórbido percorrer sua espinha quando notou que o velho o encarava com um olhar sinistro e percebeu com espanto ainda maior que, com a boca tremula, ele proferia palavras sem emitir som algum. Isso o fez se sentir mal e já bem apavorado, deu as costas à cena e partiu.
Já de noite, quando chegou a casa, um apartamento pequeno no subúrbio, que ele dividia apenas com a lembrança da ex-mulher, Paulo tirou o uniforme e foi tomar banho, dentro de si, ainda carregava uma sensação ruim que lhe dava um frio na barriga. A imagem do cachorro morto ainda estava fresca em sua mente, fixada como um papel de parede, mas o pior era a lembrança do olhar do velho Ivo Nogueira. Era como se o sujeito ainda estive ali, na sua frente olhando para ele, surrando algo..
As pessoas do bairro diziam que os Nogueiras faziam trabalhos espirituais e que mexiam com magia negra, coisa pesada. Ainda pensando nisso Paulo tentou jantar, serviu-se de uma lasanha de carne que ele esquentou no micro-ondas, mas parou de comer na primeira garfada. O paladar rejeitou o alimento, dizendo ao celebro que aquilo não era massa com molho e carne moída, mas sim sobras de um cachorro morto, aquecido no asfalto numa tarde de verão.
Enojado, Paulo correu até o banheiro e vomitou. Sentia suas próprias tripas se contorcer e já sem forças, jogou-se no sofá e ligou a TV, mas acabou adormecendo ali mesmo. Na própria mente em um sono profundo, algo lhe assombrou os sonhos, era um latido bestial e ensurdecedor que o fez acordar ao pulos.
Demorou alguns minutos para se acalmar. Quando abriu os olhos a TV estava na estática, chiando como um pesadelo, e assim que Paulo fitou o relógio na parede, viu que ainda era três da madrugada. Estava suado, tremendo, e um tanto assustado, mas o cansaço o consumia, então Paulo desligou o aparelho e voltou a dormir ali mesmo, mas assim que começou a sonhar o som do latido voltou, ainda mais alto do que a primeira vez e mais forte.
Pela segunda vez naquela noite, Paulo abriu os olhos, assustado, mas dessa vez, o som não parou. Continuava forte, alto e claro, foi então que soube: era o cão dos Nogueira, renascido do inferno. Desesperado o carteiro olhou em volta a procura do animal, mas nada viu. Desconfiado revistou a casa, porém não obteve sucesso, saiu e procurou no quintal e ali percebeu que o latido brotava de outro lugar, de sua mente, nos confins de seu pensamento.
Era algo terrível que fazia sua cabeça doer, cozinhando seus miolos dentro do crânio. Aquilo lhe tirou o sono por completo e o deixou ainda mais transtornado. . No dia seguinte não foi trabalhar, como poderia? O latido gutural que brotava de sua cabeça não dava trégua e o impedia de se concertar em qualquer coisa. Quando fechava os olhos via o velho Ivo, olhando pra ele, sussurrando palavras desconhecidas, de puro ódio e rancor.
Além disso tudo, descobriu outra coisa: tudo o que punha na boca tinha gosto de carne crua aquecida. Paulo não podia mais comer e ao sair de casa na procura de um médico mais uma surpresa, por onde fosse tinha a estranha sensação de estar sendo seguido, até mesmo sua sombra estava estranha, às vezes curvava-se de quarto e saia correndo diante de seus olhos.
Conforme os dias foram passando às coisas só pioravam, Paulo ouvia, enxergava e sentia coisas que só ele presenciava. Estava enlouquecendo, e emagrecendo também. Parou de ir ao trabalho e de ver as pessoas, isolou-se em casa e somente no sétimo dia depois da morte do cão dos Nogueira, encontrou a solução para seus problemas, ela estava dentro de um revolver calibre 38 que ele colocou na boca e puxou o gatilho.
Alivio.
Depois de morto ele viu o próprio cadáver no chão da sala de casa, sentia-se estranho, podia atravessar paredes e flutuar acima do chão, no entanto não sentia frio, calor nem fome e o melhor, não ouvia mais o latido do cachorro. Saiu de casa atravessando a porta, como se fosse uma cortina de agua, perguntou-se o que viria a seguir, ao sair na rua, pois era novato nesse lance de vida-a-pôs a morte.
Procurou em algum lugar uma escada para o céu, ou mesmo um buraco para o inferno. Sem sucesso decidiu que agora poderia passar o tempo assombrando o velho Ivo Nogueira, o desgraçado que o havia amaldiçoado. Faria isso até que o velho morresse do coração, mas quando chegou ao portão da casa dele, Paulo estancou no chão, pois viu ali um velho amigo, que esperava por ele, com um sorriso demoníaco nos lábios, babando enquanto rosnava.
Era o cão dos Nogueira, morto, assim como ele. Paulo gemeu de pavor e fugiu quando o animal atravessou o portão, eles correram pelo ar, sem que ninguém lhes desse atenção. Assim que viu o animal atravessar um ônibus sem se machucar, o carteiro chorou e se amaldiçoou, ali estava o inferno, um ciclo vicioso que transcendeu a morte e duraria até o fim dos tempos, ligando carteiro e cachorro para todo o sempre.
Escrito por Rodrigo S. Rodrigues - 08/09/2015
massa parabéns :D
ResponderExcluirGenteeee!!
ResponderExcluirMt bom!!!!
Palmas!!
Beijinhos :*
Sankas Books
Esse carteiro deve ter sido muito ruim na encarnação anterior, pra merecer um pós-vida desses. :)
ResponderExcluir:o ... caraca... muito bom!
ResponderExcluirAdorei, simplesmente ótimo, parabéns Rodrigo Shepard
ResponderExcluirUm conto eletrizante, Camila.
ResponderExcluirParabéns ao escritor, Rodrigo S. Rodrigues.
Ficção bem atrelada à doutrina espírita.
Beijo.
Que conto maravilhoso, fiquei apreensiva ao ler. haha adoro
ResponderExcluirPost it & Livros
Olá Flor
ResponderExcluirTudo bem?
Caramba, Gostei bastante do conto!
Adoro contos de Terror, confesso que estava com mesma ideia na cabeça para Blog HAHAHAHA mas sinceramente na minha opinião o paulo Mereceu Tudo isso!Os animas agem por instante o Paulo não parecia ser a melhor pessoa do mundo, Fiquei com Peno do Velhinho mesmo com as Magias Negras dele HAHAHAHA
Adorei post
Beijinhos
http://resenhaatual.blogspot.com.br/